Bemol Saltitante, um ratinho ao piano




Bemol Saltitante, um ratinho ao piano

O ratinho Bemol Saltitante adorava música. Por isso, vivia dentro de um piano. Era um lugar amplo, elegante e quentinho, mas o que mais lhe agradava era que todos os dias podia ouvir música durante horas.

O dono do piano era um pianista que adorava a sua profissão, pelo que passava dias inteiros a tocar e tocar. Sonatas, rapsódias, partituras e outras peças de música ecoavam na enorme sala, e escapavam pelas janelas.

Bemol gostava de se sentar num cantinho tranquilo ao fundo da caixa de ressonância e desfrutar das baladas de amor. Gostava também de dançar entre os abafadores quando o pianista tocava uma marcha.

O pianista estava radiante com o seu piano. Tinha um som estupendo e, surpreendentemente, não o afinava havia anos. O que o pianista não sabia era que, durante as noites, o pequeno Bemol se encarregava de esticar e afinar as cordas e de limpar o pó que se acumulava entre as teclas. Bemol gostava de ter a sua casa em boas condições.

Algumas noites, o ratinho divertia-se a patinar sobre a tampa do piano, outras passava-as lendo e decorando as partituras que o pianista deixava sobre a estante.

Os outros ratos que viviam na casa consideravam Bemol um louco. Em vez das pequenas frestas nas paredes, das caixas no sótão ou dos livros ao fundo da biblioteca, preferia viver num piano. Isso era de doidos. Além de que o risco de ser descoberto pelo pianista era enorme e, se tal acontecesse, o homem saberia que tinha ratos em casa, o que seria uma desgraça para todos.

O Conselho dos Ratos reuniu-se para tratar do assunto e pôr na ordem o rato rebelde.

— Bemol Saltitante — disse o rato mais velho da casa. — É decisão deste conselho que, a partir desta mesma noite, abandones o piano como tua residência. Pões toda a comunidade em risco e isso não podemos permitir. De modo que terás de viver aqui connosco.

Bemol tentou argumentar, mas o ancião interrompeu-o:

— Bemol, não se fala mais nisto, já está decidido. Contudo, preparámos-te uma das caixas mais cómodas da cave. É de madeira e está cheia de novelos de lã. Além disso, encontra-se na última prateleira, um óptimo sítio. Se queres ser um membro desta comunidade, terás de aceitar a nossa decisão.

Bemol podia estar louco, mas era um bom ratinho, de maneira que aceitou aquela decisão, pensando no bem de todos.

A caixa não podia ser melhor, cómoda e bem situada. Como forma de lhe desejarem as boas-vindas, outros ratos tinham-lhe deixado três pedacinhos de queijo. Mas Bemol estava triste, e como lhe fazia falta o seu piano!

Na primeira noite comeu um bocadinho de queijo e, com os outros dois, fez uns tampões para os ouvidos. Funcionou, não ouviu nada toda a noite e depressa adormeceu.

No dia seguinte, quando lhe deu a fome, comeu um dos tampões de queijo.

Devagarinho, as notas de uma preciosa melodia que chegavam da sala de música foram entrando pelo seu ouvido direito. Bemol sentiu uma imensa vontade de correr em direcção ao som, mas cerrou os dentes e tapou a orelha com a mão. Assim passou o dia inteiro, com uma mão e um pedaço de queijo a tapar os ouvidos.

Ao terceiro dia, Bemol comeu o último pedaço de queijo e, assim, ficou sem tampões. Logo chegaram aos seus ouvidos, dos confins da sala de música, as primeiras notas da Fantasia Kortakowsky, sem dúvida a obra musical mais bela e complexa alguma vez escrita para piano.

A sua primeira reacção foi tapar de novo as orelhinhas, mas, sem querer, começou a trauteá-la. Primeiro retirou uma mão, depois a outra e, sem poder evitá-lo, desatou a correr escada acima em direcção à sala de música.

Atravessou vários tabiques, subiu pela canalização e chegou até uma pequena fresta na parede da sala de música. E ali estava o pianista, a interpretar aquela peça maravilhosa.

— Tenho de chegar ali — pensou Bemol.

E, sem sequer parar para pensar, desatou a correr em direcção ao piano, arriscando-se a ser descoberto.

Mas Bemol teve sorte e chegou aos enormes pés do piano sem ser visto. O pianista estava concentrado, movendo vertiginosamente as mãos sobre as teclas. O ratinho trepou pelo piano e escondeu-se mesmo atrás da estante. Esse seria o lugar indicado para desfrutar do concerto. Que belo regresso a casa, na primeira fila a ouvir a Fantasia Kortakowsky.

A música era cada vez mais complexa; o pianista via-se e desejava-se para chegar a todas as teclas. O pequeno Bemol continuava atrás da estante, movendo os seus dedinhos sobre um teclado imaginário. Até que chegou o último andamento, o mais complicado. Nenhum pianista, depois de Kortakowsky, tinha sido capaz de o interpretar correctamente. Bemol respirou fundo e preparou-se para escutar a parte final. As notas multiplicaram-se por dez, cada vez mais rápidas, cada vez mais belas.

E, então, já no fim da escala mais difícil, aconteceu: uma nota fora de lugar soou como o chiar de uma porta no meio da melodia.

— Maldição! Não é assim! — gritou o pianista, dando um soco no teclado. — Jamais conseguirei alcançar estas notas.

Bemol ficou imóvel, cruzando os dedos enquanto repetia a escala mentalmente. Então, o pianista respirou fundo e disse:

— Está bem, vou tentar mais uma vez. E começou de novo o último andamento.

As suas mãos foram acariciando as teclas cada vez mais depressa. Em boa verdade, pareciam montes de borboletas voando enlouquecidas. Bemol, com os dedos cruzados, pensava em cada nota, em cada tecla, mesmo antes de o pianista as tocar. E, então, voltou a acontecer: duas notas trocaram de sítio e o resultado foi um som tão desagradável como um puxão de orelhas. Desta vez foi Bemol quem gritou:

— Maldição! — E, de imediato, tapou a boca assustado. Todavia o pianista não o ouvira. Tinha começado a deambular pela sala, murmurando aborrecido. Além disso, a voz dos ratos não é lá grande coisa.

O homem voltou a sentar-se, sussurrando:

— Muito bem, última tentativa.

Bemol continuava escondido, mas, quando as notas começaram a soar, não conseguiu conter-se. O pianista estava quase a chegar ao mesmo compasso que o fizera falhar e foi então que o ratinho saiu detrás da estante e, com um salto certeiro, foi cair exactamente sobre a nota que o pianista não conseguira alcançar.

Bemol não acreditava no que acabara de fazer. Estava em cima de uma tecla, de olhos tapados, à espera que um murro o fizesse em puré e, o que seria pior, acabara de pôr em sério risco os outros ratos. Então, o músico deixou de tocar e o ratinho pensou que seria o seu fim. No entanto, perante a sua surpresa, o homem falou:

— Muito bem, ratinho! Importavas-te de repetir?

Bemol concordou rapidamente com um aceno de cabeça. O pianista começou novamente a tocar e o pequeno roedor saltava e saltava sobre as teclas exactas no momento certo.

Assim estiveram toda a tarde, tocando a dois, a peça mais complicada e bela alguma vez escrita para piano. Então, o homem compreendeu o segredo da Fantasia Kortakowsky: havia sido escrita para ser tocada por um pianista e um rato. E assim o fizeram a partir de então.

De modo que, se alguma vez tiverem a sorte de assistir a um recital de piano, prestem bem atenção ao ratinho que salta de tecla em tecla entre as mãos do pianista. Assim saberão que estão a tocar a Fantasia para Pianista e Rato de Kortakowsky.


António Amago
Bemol Saltitante, um ratinho ao piano
Matosinhos, Quidnovi Editora, 2006
adaptação



Amar é ter um pássaro pousado no dedo.

Quem tem um pássaro pousado no dedo
sabe que, a qualquer momento, ele pode voar

O Toque do Mestre

[violino.jpg]Em seus últimos anos, Beethoven passava horas tocando um clavicórdio quebrado. O instrumento carecia de valor. Faltavam-lhe teclas. As cordas estavam esticadas. Estava desafinado, era desagradável de se ouvir.

Porém, o grande pianista tocava até que lhe corriam as lágrimas pelas faces. Ao olhar para ele, se pensaria que ouvia o sublime. Assim era. Pois estava surdo. Beethoven escutava o som que o instrumento devia produzir, não o que na realidade produzia.

Alguma vez você se sentiu como o clavicórdio de Beethoven? Desafinado? Inepto? Servindo fora de tempo, insignificante?

Alguma vez se perguntou o que Deus faz quando o instrumento está quebrado? Que acontece com a canção quando as cordas estão desafinadas? Como responde o Mestre quando as teclas não funcionam? Dá meia volta e vai embora? Exige um instrumento em substituição? Se desfaz do velho? Ou será que com paciência o afina até ouvir a canção que anela?

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Gaiolas e asas

     Escolas que são gaiolas existem para que os pássaros desaprendam a arte do vôo.Sem Título-2 Pássaros engaiolados são pássaros sob controle. Engaiolados, o seu dono pode levá-los para onde quiser. Pássaros engaiolados sempre têm um dono. Deixaram de ser pássaros. Porque a essência dos pássaros é o vôo.
     Escolas que são asas não amam pássaros engaiolados. O que elas amam são pássaros em vôo. Existem para dar aos pássaros coragem para voar.
     Ensinar o vôo, isso elas não podem fazer, porque o vôo já nasce dentro dos pássaros. O vôo não pode ser ensinado. Só pode ser encorajado.

A Pipa e a Flor

Fiquei triste vendo aquela pipa enroscada no galho da árvore. Rasgada, ela girava e girava, ao vento, como se quisesse escapulir. Mas não adiantava. Você já viu aqueles bichinhos de asas, quando eles caem em teias de aranha ?  Era daquele jeito.

                    Tive dó. Pipa não foi feita para acabar assim.

                    Pipa foi feita para voar.

                    E é tão bonito quando a gente as vê, lá no alto...

                    Eu sempre quis ser uma pipa. Bem leve, sem levar nas costas nada que pese ( o que é pesado puxa a gente para baixo... ) Papel de seda, taquara fina que enverga, mas não quebra, linha forte, um pouquinho de cola e, pronto ! Lá está a pipa, pronta pra voar...

                    As cores e as formas ( que são tantas ! ) a gente escolhe aquelas que o coração está pedindo. Pipa, pra ser boa, tem que se parecer com os nossos desejos. ( E eu penso que as pessoas também, para serem boas, tem de ter uma pipa solta dentro delas...)

                    Não é preciso vento forte. Uma brisa mansinha deve levá-la até lá em cima, perto das nuvens. É por isso que elas têm de ser bem leves. O vento chega, as folhas das árvores tremem, e lá vão elas subindo, pra dentro do vazio do céu...

                    Só que tem uma coisa gozada. Pipa, pra subir, tem de estar amarradaO Menino e a Pipa na ponta de uma linha. E a outra ponta é uma mão que segura. É assim que a pipa conversa, através da linha. A mão puxa a linha e sente a linha firme, puxando pra cima, querendo ir.

                    E a pipa dizendo:

                    "Me deixa ir um pouco mais..."

                    Mas se a linha responde frouxa, é a pipa dizendo que está sem companheiro, o vento foi embora, e ela quer voltar pra casa...

                    Quando eu era menino, e me lembro, havia um homem...

                    Justo quando as pipas estavam lá em cima batizadas, carretilha sem mais linha para dar, ele vinha e comprava as pipas dos meninos. Pagava o preço justo.  Só que o gosto dele era cortar a linha. Quem nunca brincou com elas vai pensar que, com a linha cortada, vão subir cada vez mais alto, nas costas do vento, sem nada que as segure. Mas não é assim. Quando a linha arrebenta, começam a cair. E vão caindo sempre, cada vez mais longe, tristes, abanando as cabeças...

                    O menino que a fez estava alegre, e imaginou que a pipa também estivesse. Por isto fez nela uma cara risonha, colando tiras de papel de seda vermelho: 2 olhos, um nariz, uma boca...

                    O pipa boa: levinha, travessa, subia alto...

                    Gostava de brincar com o perigo, vivia zombando dos fios e dos galhos das árvores.

                    "Vocês não me pegam, vocês não me pegam..."

                    E, enquanto ria, sacudia o rabo em desafio.

                    Chegou até a rasgar o papel, num galho que foi mais rápido, mas o menino consertou, colando um remendo da mesma cor

                    Amigos, tinha aos montões. E os seus olhos iam agradando à todos eles, sempre com aquela risada gostosa, contando casos...

                    Mas aconteceu um dia, ela estava começando a subir, correndo de um lado para o outro no vento, olhar para baixo e viu, lá num quintal, uma flor. Ela já havia visto muitas flores. Só que desta vez os seus olhos e os olhos da flor se encontraram, e ela sentiu uma coisa estranha. Não, não era a beleza da flor. Já vira outras, mais belas. Eram os olhos...

                    Quem não entende pensa que todos os olhos são parecidos, só diferentes na cor. Mas não é assim. Há olhos que agradam, acariciam a gente como se fossem mãos.

                    Outros, dão medo, ameaçam, acusam, e quando a gente se percebe encarados por eles, dá um arrepio ruim por dentro. Tem também os olhos que colam, hipnotizam, enfeitiçam...

                    A pipa ficou enfeitiçada. Não mais queria ser pipa. Só queria uma coisa: fazer o que a florzinha quisesse.

                    Ah ! Ela era tão maravilhosa. Que felicidade se pudesse ficar de mãos dadas com ela, pelo resto dos seus dias...

                    E assim, resolveu mudar de dono. Aproveitando-se de um vento forte, deu um puxão, arrebentou a linha e foi cair devagarinho, ao lado da flor.

                    E deu a sua linha para ela segurar.

                    Ela segurou forte.

                    Agora, sua linha nas mãos da flor, a pipa pensou que voar seria muito mais gostoso. Lá de cima ela conversaria com ela, e ao voltar lhe contaria estórias que ela pudesse dormir.

                    E ela pediu:

                    "Florzinha, me solta..."

                    E a florzinha soltou.

                    A pipa subiu bem alto e seu coração bateu feliz. Quando se está lá no alto é bom saber que há alguém esperando, lá em baixo.

                    Mas a flor, aqui debaixo, percebeu que estava ficando triste. Não, não é que estivesse triste. Estava ficando com raiva. Que injustiça que a pipa pudesse voar tão alto e ela tivesse de ficar plantada no chão. E teve inveja da pipa.

                    Tinha raiva quando via as pipas lá em cima, tagarelando entre si. E ela, flor, sozinha deixada de fora.

                    "Se a pipa me amasse de verdade não poderia estar feliz lá em cima, longe de mim. Ficaria o tempo todo aqui comigo..."pipaflor

                    E à inveja juntou-se o ciúme.

                    Inveja é ficar infeliz vendo as coisas bonitas e boas que os outros têm e nós não.

                    Ciúme é a dor que dá quando a gente imagina a felicidade do outro, sem que a gente esteja com ele.

                    E a flor começou  a ficar malvada.

                    Ficava emburrada quando a pipa chegava.

                    Exigia explicações de tudo.

                   E a pipa começou a ficar com medo de ficar feliz, pois sabia que isto faria a flor sofrer.

                    E a flor foi, aos poucos, encurtando a linha.

                    A pipa não mais podia voar.

                    Via, ali de baixinho, de sobre o quintal ( esta era toda a distância que a flor lhe permitia voar ) as outras pipas, lá em cima...

                    E sua boca foi ficando triste. E percebeu que já não gostava tanto da flor, como no início...

                    Esta estória não terminou.

                    Está acontecendo agora, em algum lugar...

                    E há 3 jeitos de escrever o seu fim.

                    Você é que vai escolher.

1.   A pipa ficou tão triste que resolveu nunca mais voar.

                    "Não vou te incomodar com meus risos, flor, mas também não vou te dar a alegria de meu sorriso..."

                    E assim ficou amarrada à flor, mas mais longe dela do que nunca, porque o seu coração estava em sonhos de vôos e nos risos de outros tempos.

2.   A flor, na verdade, era uma borboleta que uma bruxa má havia enfeitiçado boboletae condenado a ficar fincada no chão. O feitiço só se quebraria no dia em que ela fosse  capaz de dizer não à sua inveja e ao seu ciúme e se sentisse feliz com a felicidade dos outros. E, aconteceu que um dia, vendo a pipa voar, ela se esqueceu de si mesma por um instante e ficou feliz ao ver a felicidade da pipa. Quando isto aconteceu, o feitiço se quebrou e ela voou, agora como borboleta, para o alto e os dois, pipa e borboleta puderam brincar juntos...

3.   A pipa percebeu que havia mais alegria na liberdade de antigamente que nos braços da flor. Porque aqueles eram braços que amarravam. E assim, num dia de grande ventania, e se valendo de uma distração da flor, arrebentou a linha e foi em busca de uma outra mão que ficasse feliz vendo-a voar nas alturas...

Sobre Jequitibás e Eucaliptos


Educadores, onde estarão? Em que covas se terão escondido? Professores há aos milhares. Mas o professor é profissão, não é algo que se define por dentro, por amor. Educador, ao contrário, não é profissão; é vocação. E toda vocação nasce deum grande amor, de uma grande esperança.

Profissões e vocações são como plantas. Vicejam e florescem em nichos ecológicos, naquele conjunto precário de situações que as tornam possíveis e - quem sabe? - necessárias. Destruído esse habitat, a vida vai-se encolhendo, murchando, fica triste, mirra, entra para o fundo da terra, até sumir.E o educador? Que terá acontecido com ele? Existirá ainda o nicho ecológico que torna possível a sua existência? Resta-lhe algum espaço? Será que alguém lhe concede a palavra ou lhe dá ouvidos? Merecerá sobreviver? Tem alguma função social ou econômica a desempenhar? Uma vez cortada a floresta virgem, tudo muda. É bem verdade que é possível plantar eucaliptos, essa raça sem vergonha que cresce depressa, para substituir as velhas árvores seculares que ninguém viu nascer nem plantou. Para certos gostos, fica até mais bonito: todos enfileirados, em permanente posição de sentido, preparados para o corte. E para o lucro. Acima de tudo, vão-se os mistérios, as sombras não penetradas e desconhecidas, os silêncios, os lugares ainda não visitados. O espaço racionaliza- se sob a exigência da organização. Os ventos não mais serão cavalgados por espíritos misteriosos, porque todos eles só falarão de cifras, financiamentos e negócios.

Que me entendam a analogia. Pode ser que educadores sejam confundidos com professores, da mesma forma como se pode dizer. Jequitibá e eucalipto, não é tudo árvore, madeira? No final, não dá tudo no mesmo?

Não, não dá tudo no mesmo, porque cada árvore é a revelação de um habitat, cada uma delas tem cidadania num mundo específico. A primeira, no mundo do mistério, a segunda, no mundo da organização, das instituições, das finanças. Há árvores que têm personalidade e os antigos acreditavam mesmoque possuíam uma alma. É aquela árvore, diferente de todas, que sentiu coisas que ninguém mais sentiu. Há outras que são absolutamente idênticas umas às outras, que podem sesubstituídas com rapidez e sem problemas. Eu diria que os educadores são como as velhas árvores. Possuem uma face, um nome, uma "história" a ser contada. Habitam um mundo em que o que vale é a relação que os liga aos alunos, sendo que cada aluno é uma "entidade" sui generis, portador de um nome, também de uma "história", sofrendo tristezas e alimentando esperanças. E a educação é algo para acontecer nesse espaço invisível e denso, que se estabelece adois.

Espaço artesanal. Mas professores são habitantes de um mundo diferente, onde o "educador" pouco importa, pois o que interessa éum "crédito" cultural que o aluno adquire numa disciplina identificada por uma sigla, sendo que, para fins institucionais, nenhuma diferença faz aquele que a ministra. Por isso professores são entidades "descartáveis", da mesmaforma como há canetas descartáveis, coadores de café descartáveis, copinhos de plástico para café descartáveis. De educadores para professores realizamos o mesmo salto que de pessoa para funções...

Não sei como preparar o educador. Talvez porque isso não seja nem necessário nem possível... É necessário acordá-lo. E aí aprenderemos que educadores não se extinguiram como tropeiros e caixeiros. Porque, talvez, nem tropeiros nem caixeiro tenham desaparecido, mas permaneçam como memórias de um passado que está mais próximo do nosso futuro que o ontem. Basta que os chamemos do seu sono, por um acto de amor e coragem. E talvez, acordados, repetirão o milagre da instauração de novos mundos.

(ALVES,Rubem. Sobre Jequitibás e Eucaliptos.in:Conversas com Quem Gosta de Ensinar)

Borboletas e Morcegos

Esta é uma estória sobre borboletas e morcegos. Borboletas são bichinhos leves, de asas coloridas, que gostam de brincar com as flores enquanto o sol está brilhando no céu. As borboletas amam o dia. Os morcegos são bichos feios, de asas negras, que só voam durante a noite.

Essa estória aconteceu, faz muito tempo. O Sol brilhava sozinho no céu, sorridente. Tinha estado brilhando, sem parar, desde toda eternidade. Mas chegou um dia em que ele se cansou de brilhar sozinho. Ficou triste. E ele disse para si mesmo: “Para quem estou brilhando? Que adianta brilhar se não há ninguém que brinque com os meus raios? Só ficarei alegre de novo quando tiver amigos com quem brincar…”

Ditas essas palavras o Sol resolveu criar o mundo. E foi assim que ele fez: começou a piscar, e a cada piscada que ele dava uma coisa nova aparecia. Piscou montanhas, piscou rios, piscou mares, piscou praias, piscou florestas. Piscou sapos, piscou girafas, piscou camelos, piscou macacos, piscou tucanos… Piscou caramujos, piscou joaninhas, piscou lagartixas, piscou grilos… Piscou jabuticabas, piscou mangas, piscou pitangas… Piscava, e quando via a coisa que aparecia, o Sol morria de dar risada. Porque tudo era muito divertido. Por fim ele piscou um jardim, piscou balanços, piscou gangorras - e piscou um punhado de crianças, meninas e meninos. E foi assim que a nossa Terra foi criada.

“Agora tenho para quem brilhar, agora tenho com quem brincar”, disse o Sol cheio de felicidade. E para que nunca houvesse tristeza ele criou, por fim, as borboletas. As borboletas são os Anjos da Alegria que o Sol colocou no mundo. Mas, para isso, elas têm de ter uma dieta especial: alimentam-se do néctar das flores, porque as flores estão sempre alegres. E o Sol lhes disse: “Quando vocês virem uma pessoa triste, chorando, pousem no seu nariz! Com uma borboleta pousada no nariz não há jeito de não sorrir!” E assim, graças às borboletas, o mundo que o Sol criou estava sempre alegre.

E o Sol piscou também lindas borboletas pretas de grandes asas brilhantes. Preto é uma linda cor: cor das jabuticabas, cor de cabelos, cor de olhos, cor da noite: é preciso que a noite seja preta para que as estrelas brilhem.

Mas as borboletas pretas não gostaram da sua cor. Acharam que preto era feio. Queriam ser coloridas. Ficaram com inveja das borboletas coloridas. Ficaram com raiva das borboletas coloridas. Ficaram com raiva do Sol, que as tinha feito pretas. E se recusaram a brincar.
“Brincar nós não vamos”, elas disseram. Deixaram a brincadeira e se esconderam em buracos profundos, em cavernas escuras. E ficaram lá, remoendo sua raiva, remoendo sua inveja. E foi assim que as borboletas pretas, de tanto ficarem no escuro, acabaram por ficar cegas para a luz. Só viam no escuro. Passaram a ter raiva do dia, quando tudo estava brincando. E a raiva fez nelas uma transformação feia. Raiva não beija. Raiva morde. Assim, a boca gostosa que tinham, para beijar as flores e sugar o seu mel, se encheu de dentes afiados. Deixaram de ser borboletas. Transformaram-se em morcegos.

Seu mundo passou a ser as cavernas fundas e escuras da terra onde moravam. E foram se multiplicando, tendo filhos, muitos filhos, todos eles com olhos cegos para a luz, todos eles com dentes afiados em sua boca.

Mas chegou um dia em que as cavernas ficaram pequenas para os milhões, os zilhões de morcegos. O que acontece com uma bexiga que a gente vai enchendo de ar, sem parar? Chega um momento em que – bum! – a bexiga estoura. Pois foi o que aconteceu. As cavernas estouraram. Aconteceu uma erupção de morcegos, parecida com a erupção dos vulcões. Saíam morcegos por todos os buracos da terra, morcegos que não paravam de sair – e eram tantos, tantos, que eles se transformaram numa enorme nuvem negra que cobriu a luz do sol.
Ficou noite. E os morcegos, vendo a escuridão, ficaram felizes e riram um riso malvado: “Estamos vingados! Agora será sempre noite! As borboletas coloridas não mais voarão.. O Sol não terá com quem brincar!”

E foi isso mesmo que aconteceu. As borboletas, ao abrir os olhos do seu sono, viram tudo escuro e disseram: “Ainda é noite. Não é hora de brincar”. E voltavam a dormir.

O Sol não brilhando, ficou frio. As borboletas começaram a tremer. E trataram de se proteger. Teceram cobertores de fios e neles se enrolaram. E ficaram assim penduradas em árvores, em paus de telhado, em paredes, dormindo, dormindo, esperando que o dia voltasse… E o mundo ficou triste porque não havia mais borboletas que pousassem no nariz dos tristes para fazê-los espirrar e sorrir. E o Sol ficou triste porque não tinha mais com quem brincar.

Mas o Sol era esperto. Sabia que há duas maneiras de iluminar criaturas. A primeira é brilhando do lado de fora. A segunda é brilhando do lado de dentro. O brilho do Sol, no lado de dentro da gente se chama “sonho”. O sono é a hora em que o Sol brilha do lado de dentro da gente.
Sonhamos com aquilo de desejamos. O Sol, então, começou a iluminar as borboletas durante os seus sonhos. Ele aparecia disfarçado de estrela.

Havia uma borboleta que, enrolada em seu cobertor, se pendurara no pau de um estábulo. Estábulo é onde ficam as vacas, os cavalos, as ovelhas… Essa borboleta sonhou com a estrela. Era uma estrela enorme, diferente. Brilhava com uma luz azul. Os morcegos não ligaram porque pensaram que era apenas a luz de mais uma estrela. Não sabiam que era a luz do Sol disfarçado…
A borboleta, dormindo pendurada no pau do estábulo, ficou feliz vendo a estrela. Tão feliz que começou a sorrir. E a felicidade, mesmo sonhada, tem um poder mágico: transforma as pessoas.
E a borboleta começou a engordar. É que o Sol havia colocado na luz da estrela azul as suas sementes de alegria. A borboleta adormecida, iluminada com a luz da estrela azul, ficou grávida com a alegria do Sol!

A barriga da borboleta foi crescendo, foi crescendo – até que chegou a hora do nascimento da alegria que o Sol plantara dentro dela.

Finalmente a alegria nasceu. Nasceu, e tinha a aparência de um Menininho. E como ele era filho do Sol, ele brilhava como o seu pai. O brilho do Menininho fez tudo ficar luminoso.. Quem visse o Menininho ficava iluminado: ficava alegre, se esquecia da tristeza.

E assim, iluminado pela luz do Menininho, o mundo foi acordando. Foi como acontece nas madrugadas: a escuridão da noite vai sumindo, iluminada pelas lindas cores que vão aparecendo no horizonte.

O mundo acordou da noite escura. Acordaram os pássaros, acordaram as flores, acordaram os riachos, acordou o mar, acordaram as nuvens, acordaram as borboletas. Acordadas, as borboletas começaram a voar. E foram elas pousando no nariz dos homens e das mulheres. E eles espirravam e davam risadas!

Os morcegos, quando perceberam que tinham sido enganados pelo Sol, ficaram furiosos. O Morcegão Rei deu ordem aos morcegos para que fossem até o estábulo e comessem o Menino-Sol. E eles partiram cheios de raiva, com seus dentes afiados à mostra. Mas, quando iam chegando, a luz era tão bonita! A luz do Menino-Sol iluminava suas asas pretas. E o brilho do Sol nas suas asas era lindo. Era como o Sol nascendo, no meio da noite, luz brilhando na escuridão. E os morcegos olharam uns para os outros e se espantaram: nunca haviam se visto assim, tão bonitos. Assentaram-se na cerca que cercava o estábulo, encantados com a beleza que morava neles e que eles nunca haviam visto, por causa da inveja e da raiva. E começaram a sorrir. E quando sorriram deram espirros, e o espirro foi tão forte que seus dentes afiados caíram.
Voltaram a ser borboletas! E os outros morcegos, vendo o que estava acontecendo com seus amigos, ficaram curiosos e foram ver o Menino-Sol. E quando o viram, a mágica se repetiu: se acharam bonitos e foram transformados em borboletas.

Borboletas, passaram a gostar de brincar com a luz. O dia voltou. O Sol brilhou no céu. E as borboletas voltaram a fazer o seu trabalho de espantar a tristeza assentando-se no nariz dos tristes!

Que coisa mais bonita! O Sol, ninguém pode ver. Sua luz é muito forte. Quem olha para o Sol fica cego. Ninguém pode brincar com ele. Sua luz é muito quente. Queima. Mas, no rosto do Menino-Sol a luz do sol fica mansa: a gente pode brincar com ele.

E desde aquele dia é assim: se alguém está triste basta olhar para o rosto de uma criança: uma borboleta vem voando, faz cócegas no nariz, vem um espirro, a tristeza vai embora e a gente começa a sorrir…

A Libélula e a Tartaruga

A libélula recém nascida, que pairava as suas leves asas sobre a água transparente do ribeirão, viu imóvel sobre uma pedra, uma tartaruga que tomava banho de sol. Espantada diante de uma criatura tão feia, pousou sobre uma folha de capim a fim de ver melhor. A tartaruga, achando que a libélula a estava admirando, começou a falar:
- Olá - disse ela.

A libélula levou um susto.
- Pensei que você estivesse morta, de tão parada.

- Já fui como você, minha criança, muito agitada, mas aprendi que é perigoso vier assim. Em você tudo é esbanjamento: asas vibrando, ir e vir nas costas do vento, voar sem cessar. Mas tudo isso faz mal. Quem se mexe muito morre logo. A vida é como a vela: há de se economizar para durar mais. Minha filosofia é simples: nunca ficar de pé, quando posso ficar deitada. Para simplificar, fico sempre deitada…

A libélula espantada de que alguém pudesse viver assim, ia perguntar se a vida vale a pena. Mas não deu tempo porque a tartaruga continuou a falar:
- Você ainda não aprendeu a lição do peso. Para se voar é preciso ser leve. Mas tudo o que é leve é frágil. As crianças gostam de empinar papagaios. Mas para subir no vento, else têm de ser feitos com varetas finas de bambu e papel de seda. Por isso, acabam quase sempre enroscados em algum galho de árvore. Mas você nunca viu uma tartaruga enroscada num galho de árvore.
Estão fora dos enroscos porque não se metem a voar, porque são muito pesadas e por isso ficam sempre junto ao chão. Somos prudentes. Voar é perigoso, exige leveza e fragilidade. Isso é coisa que fascina as crianças, mas não os adultos. Os adultos são graves. E grave é aquilo que respeita a lei da gravidade e gosta de ir para baixo. Como eu. Os adultos quando querem elogiar alguém dizem que ele é uma pessoa de peso. O contrário de peso? Leveza, bexiga solta no espaço.
Quando se diz que alguém é leviano, isso não é um elogio, é uma ofensa. Leviano é quem não leva as coisas a sério, como as crianças. Quanto mais adultas, mais parecidas comigo.

A libélula ia dizer que ser leve é coisa muito gostosa, porque dá sempre uma enorme vontade de rir, mas se calou, com medo de ser acusada de leviana. A tartaruga não entenderia.

- E há também a necessidade de defesas - continuou a tartaruga - Veja o seu corpo, fino como um palito. O bico de qualquer pássaro pode cortá-lo ao meio. E suas asas? Lindas e fracas. Veja agora a minha carapaça. Nem martelo consegue quebrá-la. Você é mole, eu sou dura. Mole são as crianças, os palhaços, os poetas, os artistas. Duros são os generais, os banqueiros, os policiais, as pessoas importantes. Quando as crianças deixam de ser uma libélula para se tornarem uma tartaruga, os adultos dizem que elas ficaram maduras. Na verdade o que querem dizem é que ficaram armaduras. Coisa madura é coisa mole, gostosa, boa de se comer e se descuidar apodrece e acaba. Já a armadura é coisa que vara os séculos. Como eu, impenetrável, constante, sempre a mesma. Digna de confiança. Serei amanhã o que sou hoje. Quanto a você, não sei onde estará. As coisas leves passam. As duras permanecem. Ninguém diz que Deus é vento ou nuvem.

Mas dizem que é rocha e fortaleza. Claro que as armaduras criam certos problemas. Fica difícil para brincar, pular, abraçar… Mas é o preço da sobrevivência.

A menina, a gaiola e a Bicicleta

Olhem para o menino.
Ele está feliz.
Ganhou uma bicicleta.
Era seu maior desejo.
É a primeira vez que monta numa.
Ainda não sabe andar direito.
Mas não importa.
Uma vez tem que ser a primeira.
O menino ama a menina.
Convidou-s para passear com ele de bicicleta.
Ela aceitou, com uma condição: queria levar consigo o seu pássaro, dentro de uma gaiola enorme.
O menino preferia que ela fosse sozinha com ele.
Ficou triste. Mas concordou.
A gaiola era grande demais.
Não cabia na bicicleta.
A menina teve que de fazer o passeio olhando para trás.
Quem carrega gaiolas, olha sempre para trás.
O menino olhava para a frente.
Olhando para trás, a menina não podia ver as mesmas coisas que o menino via.
A bicicleta ficou com dó do pássaro. Pensou que morreria de tristeza se alguém a prendesse numa gaiola.
Resolveu ajudá-lo.
Aproveitando-se do fato de que o menino ainda não sabia andar direito, virou o guidão, endureceu o freio e fio bater direto numa árvore.
Tudo se esparramou pelo chão.
O menino caiu.
A menina caiu.
A gaiola caiu.
O que estava grudado desgrudou.
O que estava amarrado desamarrou.
O que estava desembrulhado desembrulhou.
A porta da gaiola se abriu e o pássaro saiu.
Saiu e parou. Não voou.
Queria ter certeza de que a menina e o menino estavam bem.
Cantou, então, para eles, o canto da despedida e voou.
A menina ficou triste porque o pássaro se foi.
Mas era preciso consertar a bicicleta e continuar o passeio.
Ela e o menino trabalharam muito e a bicicleta ficou como nova.
Mas nem a menina, nem o menino sabiam que, quando uma gaiola é aberta,
as borboletas saem dos casulos que os prendem e se põe a voar.
Borboletas, milhares de borboletas,
de todas as formas, cores e tamanhos começaram a seguir o menino, a menina e a bicicleta.
Eles tinham estado dormindo na árvore e acordaram com o canto do pássaro.
Agora o menino, a menina, a bicicleta pareciam um cometa, com uma longa cauda colorida de borboletas.
É isso que é o arco íris.
Sem a gaiola para atrapalhar, a menina abraçou o menino.
Um menino abraçado é melhor que um pássaro engaiolado.
Abraçados, os dois olhavam para a frente.
Conversavam sobre as coisas bonitas que viam.
O menino ficou feliz.
A menina ficou feliz.
A bicicleta ficou feliz.
Quanto ao pássaro, foi transformado num anjo, com a missão de proteger o menino, a menina e a bicicleta,
guardando os seus caminhos, os desvios, as trilhas e até mesmo as forquilhas onde os fantasmas fazem amor.

O Passarinho Engaiolado

Dentro de uma linda gaiola vivia um passarinho.
De sua vida o mínimo que se poderia dizer era que era segura e tranquila, como seguras e tranquilas são as vidas das pessoas bem casadas e dos funcionários públicos.

Era monótona, é verdade. Mas a monotonia é o preço que se paga pela segurança. Não há muito o que fazer dentro dos limites de uma gaiola, seja ela feita com arames de ferro ou de deveres. Os sonhos aparecem, mas logo morrem, por não haver espaços para baterem suas asas. Só fica um grande buraco na alma, que cada um enche como pode. Assim, restava ao passarinho ficar pulando de um poleiro para outro, comer, beber, dormir e cantar. O seu canto era o aluguel que pagava ao seu dono pelo gozo da segurança da gaiola.

Bem se lembrava do dia em que, enganado pelo alpiste, entrou no alçapão. Alçapões são assim; tem sempre uma coisa apetitosa dentro. Do alçapão para a gaiola, o caminho foi curto, através da Ponte dos Suspiros.

Há aquele famoso poema do Guerra Junqueiro, sobre o melro, o pássaro das risadas de cristal. O velho cura, rancoroso, encontrara seu ninho e prendera seus filhotes na gaiola. A mãe, desesperada com o destino dos filhos, e incapaz de abrir a portinha de ferro, traz no bico um galho de veneno. Meus filhos, a existência é boa só quando é livre.A liberdade é a lei. Prende-se a asa, mas a alma voa... Ó filhos, voemos pelo azul...! Comei...!

É certo que a mãe do passarinho nunca lera o poeta, pois o que ela disse ao filho, foi: Finalmente minhas orações foram respondidas. Você está seguro, pelo resto de sua vida. Nada há a temer. Não é preciso se preocupar. Acostuma-se.Cante bonito. Agora posso morrer em paz.

Do seu pequeno espaço ele olhava os outros passarinhos. Os bem-te-vis, atrás dos bichinhos; os sanhaços, entrando mamões adentro; os beija-flores com seu mágico bater de asas; os urubus nos seus vôos tranquilos da fundura do céu; as rolinhas arrulhando, fazendo amor. As pombas voando como flexas. Ah! Os prudentes conselhos maternos não o tranquilizavam. Ele queria ser como os outros pássaros, livres...Ah! se aquela maldita porta se abrisse.

Pois não é que, para surpresa sua, um dia o seu dono a esqueceu aberta? Ele poderia agora realizar todos os seus sonhos. Estava livre, livre, livre!

Saiu. Voou para o galho mais próximo. Olhou para baixo. Puxa! Como era alto. Sentiu um pouco de tontura.Estava acostumado com o chão da gaiola, bem pertinho. Teve medo de cair. Agachou-se no galho, para Ter mais firmeza. Viu uma outra árvore mais adiante. Teve vontade de ir até la. Perguntou-se se suas asas aguentariam. Elas não estavam acostumadas. O melhor seria não abusar, logo no primeiro dia. Agarrou-se mais firmemente ainda. Neste momento um insetinho passou voando bem na frente do seu bico. Chegara a hora. Esticou o pescoço o mais que pôde, mas o insetinho não era bobo. Sumiu mostrando a língua.

__ Ei, você __ era uma passarinha. __ Vamos voar juntos até o quintal do vizinho. Há uma linda pimenteira, carregadinha de pimentas vermelhas. Deliciosas. Apenas é preciso prestar atenção no gato, que anda por lá...Só o nome gato lhe deu arrepio. Disse para a passarinha que não gostava de pimentas. A passarinha procurou outro companheiro. Ele preferiu ficar com fome. Chegou o fim da tarde e, com ele a tristeza do crepúsculo. A noite se aproximava. Onde iria dormir? Lembrou-se do prego amigo, na parede da cozinha, onde sua gaiola ficava dependurada. Teve saudades dele. Teria de dormir num galho de árvore, sem proteção. Gatos sobem em árvores? Eles enxergam no escuro? E era preciso não esquecer os gambás. E tinha de pensar nos meninos com seus estilingues, no dia seguinte.

Tremeu de medo. Nunca imaginaria que a liberdade fosse tão complicada. Somente podem gozar a liberdade aqueles que têm coragem. Ele não tinha. Teve saudade da gaiola. Voltou. Felizmente a porta ainda estava aberta.

Neste momento chegou o dono. Vendo a porta aberta, disse:

___ Passarinho bobo. Não viu que a porta estava aberta. Deve estar meio cego. Pois passarinho de verdade não fica em gaiola. Gosta mesmo é de voar.


Rubem Alves
In TEOLOGIA DO COTIDIANO
Meditações sobre o Momento e a Eternidade

A Menina e o Pássaro Encantado

Era uma vez uma menina que tinha um pássaro como seu melhor amigo.Ele era um pássaro diferente de todos os demais: Era encantado.

Os pássaros comuns, se a porta da gaiola estiver aberta, vão embora para nunca mais voltar.Mas o pássaro da menina voava livre e vinha quando sentia saudades... Suas penas também eram diferentes. Mudavam de cor. Eram sempre pintadas pelas cores dos lugares estranhos e longínquos por onde voava.Certa vez, voltou totalmente branco, cauda enorme de plumas fofas como o algodão."- Menina, eu venho de montanhas frias e cobertas de neve, tudo maravilhosamente branco e puro, brilhando sob a luz da lua, nada se ouvindo a não ser o barulho do vento que faz estalar o gelo que cobre os galhos das árvores. Trouxe, nas minhas penas, um pouco de encanto que eu vi, como presente para você...".E assim ele começava a cantar as canções e as estórias daquele mundo que a menina nunca vira. Até que ela adormecia, e sonhava que voava nas asas do pássaro.Outra vez voltou vermelho como fogo, penacho dourado na cabeça.“... Venho de uma terra queimada pela seca, terra quente e sem água, onde os grandes, os pequenos e os bichos sofrem a tristeza do sol que não se apaga.·Minhas penas ficaram como aquele sol e eu trago canções tristes daqueles que gostariam de ouvir o barulho das cachoeiras e ver a beleza dos campos verdes.··E de novo começavam as estórias. A menina amava aquele pássaro e podia ouvi-lo sem parar, dia após dia. E o pássaro amava a menina, e por isso voltava sempre”.Mas chegava sempre uma hora de tristeza. "- Tenho que ir", ele dizia."- Por favor não vá, fico tão triste, terei saudades e vou chorar...."."- Eu também terei saudades", dizia o pássaro. "-- Eu também vou chorar.Mas eu vou lhe contar um segredo: As plantas precisam da água, nós precisamos do ar, os peixes precisam dos rios... E o meu encanto precisa da saudade. É aquela tristeza, na espera da volta, que faz com que minhas penas fiquem bonitas. Se eu não for, não haverá saudades. Eu deixarei de ser um pássaro encantado e você deixará de me amar. Assim ele partiu. A menina sozinha, chorava de tristeza à noite, imaginando se o pássaro voltaria. E foi numa destas noites que ela teve uma idéia malvada. "- Se eu o prender numa gaiola, ele nunca mais partirá; será meu para sempre. Nunca mais terei saudades, e ficarei feliz". Com estes pensamentos comprou uma linda gaiola, própria para um pássaro que se ama muito. E ficou à espera. Finalmente ele chegou, maravilhoso, com suas novas cores, com estórias diferentes para contar. Cansado da viagem, adormeceu. Foi então que a menina, cuidadosamente, para que ele não acordasse, o prendeu na gaiola para que ele nunca mais a abandonasse. E adormeceu feliz.Foi acordar de madrugada, com um gemido triste do pássaro."- Ah! Menina... Que é que você fez? Quebrou-se o encanto. Minhas penas ficarão feias e eu me esquecerei das estórias...". Sem a saudade, o amor irá embora...A menina não acreditou. Pensou que ele acabaria por se acostumar. Mas isto não aconteceu. O tempo ia passando, e o pássaro ia ficando diferente. Caíram suas plumas, os vermelhos, os verdes e os azuis das penas transformaram-se num cinzento triste. E veio o silêncio; deixou de cantar.Também a menina se entristeceu. Não, aquele não era o pássaro que ela amava. E de noite ela chorava pensando naquilo que havia feito ao seu amigo... Até que não mais agüentou. Abriu a porta da gaiola. "- Pode ir, pássaro, volte quando quiser...". "- Obrigado, menina. É, eu tenho que partir. É preciso partir para que a saudade chegue e eu tenha vontade de voltar. Longe, na saudade, muitas coisas boas começam a crescer dentro da gente. Sempre que você ficar com saudades, eu ficarei mais bonito.Sempre que eu ficar com saudades, você ficará mais bonita. E você se enfeitará para me esperar... E partiu. Voou que voou para lugares distantes.
A menina contava os dias, e cada dia que passava a saudade crescia. "- Que bom, pensava ela, meu pássaro está ficando encantado de novo...". E ela ia ao guarda-roupa, escolher os vestidos; e penteava seus cabelos, colocava flores nos vasos... "- Nunca se sabe. Pode ser que ele volte hoje...
Sem que ela percebesse, o mundo inteiro foi ficando encantado como o pássaro. Porque em algum lugar ele deveria estar voando. De algum lugar ele haveria de voltar.
AH! Mundo maravilhoso que guarda em algum lugar secreto o pássaro encantado que se ama...E foi assim que ela, cada noite ia para a cama, triste de saudade, mas feliz com o pensamento.- Quem sabe ele voltará amanhã...E assim dormia e sonhava com a alegria do reencontro.

A Menina e o Pássaro Encantado

Um dia ele voltou. Mas estava diferente.
Triste .
-- Você mudou – disse a Menina!
-- Eu sei, ele respondeu. – Perdi a alegria. Não mais tenho vontade de voar!
-- Como foi que isto aconteceu? – perguntou a Menina.
-- Estou velho. Não sou como era...—ele respondeu.
-- Quem lhe contou isto?
-- O espelho...
Com estas palavras, o Pássaro tirou de dentro de suas penas um espelho de ouro e começou a contemplar o seu rosto.
-- Não me lembro desse espelho – disse a Menina.
-- Foi presente de alguém! Deixado à minha porta –explicou o Pássaro.
“Como seu Pássaro mudara!”, a Menina pensou. Ela nunca o havia visto se olhando num espelho. Seus olhos estavam sempre cheios de mundos, de montanhas e campos nevados, florestas e mares... Tão cheios de mundos, que não havia neles lugar para sua própria imagem. Mas agora era como se os mundos não mais existissem. Os olhos do Pássaro estavam cheios do seu próprio reflexo. A Menina percebeu que seu Pássaro fora enfeitiçado. Com certeza alguém com inveja, como a madrasta da Branca de Neve. E que instrumento mais terrível para o feitiço que um espelho? Mais terrível que as gaiolas. De dentro da gaiola todos querem sair, mas dentro dos espelhos todos querem ficar.
A Menina entristeceu... E jurou que tudo faria para quebrar qualquer feitiço.
Mas de feitiços ela nada entendia. Procurou então os conselhos de um velho mago, que lhe revelou os segredos de todos os bruxedos.
-- Uma pessoa fica enfeitiçada quando se torna incapaz de amar. E, para isso, não existe nada mais forte que um espelho. O espelho faz com que as pessoas só vejam a si mesmas. E quem vê somente o próprio reflexo não consegue amar. Adoece e morre. Narciso morreu assim, enfeitiçado por sua própria beleza, refletida na água da fonte. E foi a beleza da madrasta da Branca, refletida no espelho, que a transformou de mulher linda em bruxa horrenda! Contra o feitiço do espelho existe só um remédio: é preciso redescobrir o amor, ficar de novo apaixonado. Somente o amor tem poder suficiente para arrancar as pessoas de dentro da armadilha do espelho. Mas não há receitas... Somente quem ama a pessoa enfeitiçada pode salvá-la...
A Menina pensou que, talvez, as coisas que o Pássaro sempre amara, no passado, teriam o poder para fazê-lo amar agora, no presente. E se lembrou da alegria que ele tinha nas frutas do pomar. Trouxe-lhe então as mais queridas: caquis, pitangas, mangas, romãs, jabuticabas, mexericas, aquelas que guardavam as memórias de infância escondida em sua carne. Mas o Pássaro se recusou a comer. Não tinha fome de frutas. Sua boca estava adormecida, como se não existisse... Só tinha olhos, olhos que fitavam o espelho em busca da beleza perdida, ausente...

A Menina não se deu por vencida. Resolveu tentar a sedução dos perfumes. Os perfumes são sutis: penetram fundo, nas profundezas da alma. Lembrou-se de que o Pássaro amava o cheiro bom das plantas. Foi então ao jardim e ali colheu flores de jasmim, magnólia, madressilva, flor-do-imperador e as folhas de hortelã, manjericão, rosmaninho e alecrim... “Ah!”, ela pensava, “não existe bruxedo que resista aos perfumes, pois eles entram na alma, aonde nem mesmo os pensamentos e os olhares enfeitiçantes conseguem chegar...”
Mas o Pássaro também se tornara incapaz de sentir os perfumes. Ele era só olhos, em busca de uma imagem perdida...
-- Minha tristeza mora num lugar mais fundo que o lugar dos perfumes, ele explicou à Menina.
-- Tenho saudades de mim mesmo, daquilo que já fui. Procuro, no espelho, um rosto passado, um tempo perdido... E a tristeza é por isso, porque sei que não é possível reencontrar!
A Menina pensou, então, que a ciência poderia ajudar. Procurou médicos de perto e de longe e voltou para casa carregada de pílulas e injeções cheias de alegria. Mas os milagres eram curtos e a alegria se ia tão depressa quanto chegara.
-- Minha doença não é do corpo – disse o Pássaro – Ela mora na alma. Se eu não vôo, não é porque minhas asas ficaram fracas. Elas ficaram fracas porque não desejo mais voar. E quando o desejo se vai, vai-se também a alegria... E então o corpo envelhece!
A Menina, chorando, lhe perguntou:
-- Mas não existe remédio para a tristeza?
-- Sei que existe – disse o Pássaro. - Mas num lugar muito longe (ou será muito perto?), que não sei onde é. Mas para chegar até lá, há de se saber voar. Você já voou? – o Pássaro perguntou à Menina.
-- Voar, eu? Sou uma menina, não tenho asas...
-- Mas você já tem asas – ele afirmou. – E nem sequer percebeu... É que as asas das meninas, diferente das asas dos pássaros e das borboletas, não são vistas com os olhos. São invisíveis... Só podem ser vistas com os olhos da imaginação!
A Menina nunca havia pensado nisto, que um dia ela teria asas. Parecia tão absurdo! E, de repente, se lembrou... Um presente muitos anos atrás, que seu Pássaro lhe trouxera de uma de suas viagens: um pôster colorido, uma menina, com asas de borboleta, que leve voava sobre a superfície de um lago. E ela lhe perguntara, espantada:
-- Uma menina com asas?
E o Pássaro respondera:
-- Mas você nunca percebeu as asinhas que já começam a crescer em suas costas?
E os dois riram de felicidade.
Pois é: chegara o momento em que teria que começar a voar.
-- A quem devo procurar? – ela perguntou.
-- Procure aqueles que sabem voar: os poetas. Eles têm asas mágicas, feitas com palavras e se chamam poemas !...
E a Menina partiu em busca do remédio que faz retornar a alegria à alma, a fim de dar leveza ao corpo...
Encontrou um poeta e fez seu pedido. O poeta a olhou com um olhar de bondade e lhe disse:
-- Não posso atender seu pedido. Também eu estou procurando. Sabe por que sou poeta? Porque sinto em tudo só uma pitada de alegria. Mas ela se vai tão depressa, misturada à tristeza. Passa depressa como o Vento... Até um poeta já disse:

Leve, muito leve,
Um Vento passa ,
E vai-se sempre muito leve!...
Assim é a alegria....

Nós a cantamos, quando ela aparece. Bem que gostaríamos de sermos mágicos para chamá-la e distribuí-las pelo mundo... Mas não podemos ajudá-la! Quem sabe os monges... Eles têm asas de luz... Consta que descobriram o segredo da alegria!...
A Menina amou o poeta e até quis ficar com ele mais tempo. Mas lembrou-se de seu Pássaro... E continuou. Voou alto, muito alto, para o cume de uma montanha deserta e nevada, onde monges se dedicavam à busca de Deus.
-- Si, Menina, Deus é a suprema alegria. Por vezes a sentimos. Mas passa rápido, muito rápido. Como o sol que se pões. E nada há que possa detê-la. Passa rápido como a beleza do crepúsculo. Sabe porque fizemos o nosso mosteiro tão alto? Para que a alegria do pôr-do-sol demore um pouco mais. Queremos a beleza da luz que se vai, onde mora Deus, onde mora a alegria. Venha comigo!...
E tomando a menina pela mão levou-a até um templo, lugar sagrado... E a luz do crepúsculo filtrava-se pelos vitrais de muitas cores...
-- Veja como entra pelos vitrais. Como é suave esta alegria. Mas logo se vai e a noite chega. Com a noite vem a tristeza e o medo... Felizmente, com o nascer do sol, ela volta. O choro dura uma noite toda, mas a alegria vem pela manhã... Vivemos assim, entre a tristeza que vem e a alegria que foge... Não, Menina, não conseguimos prender a alegria. Só conseguimos aprender a cantar quando ela vem... Quem sabe os revolucionários, que desejam construir o paraíso sobre a terra. Eles têm asas de fogo!...
A Menina amou aqueles homens e achou lindo o que estavam fazendo, celebrando a luz que vem e que vai... Quis ficar. Mas havia um Pássaro triste, lá embaixo, que esperava por ela. Abriu suas asas e se foi, em busca dos revolucionários. Encontrou-os nas montanhas. Moravam nas alturas, não porque quisessem subir para as estrelas como os monges, mas porque queriam descer para os vales. Amavam a terra e por ela dariam suas vidas.
-- Como gostaria de ter a resposta para sua pergunta, Menina – disse um deles, de rosto enigmático, estranha combinação de dureza e ternura. – Sei o que tira a alegria. Os corpos famintos, perseguidos, sofridos, dos pobres e fracos – ah!, como é difícil que se alegrem! A fome, a dor, a doença, as injustiças são todas inimigas da alegria. E para ela queremos preparar o caminho: quebrar as espadas, queimar as botas, abrir as prisões, distribuir as terras, perdoar as dívidas... Isto nós sabemos fazer. Mas alegria é coisa mágica que vem de dentro, não de fora. O que fazemos é preparar a terra para que ela possa vir das funduras de onde mora. Ela mora no lugar dos sonhos, aonde os nossos não podem ir! Para ter alegria é preciso sonhar. Mas este segredo nós não sabemos. Talvez os intérpretes de sonhos... Eles têm asas de luar!...
A Menina amou o rosto duro e terno daquele homem, admirou sua coragem, mas sentiu uma discreta tristeza em sua fala. Também ele não havia encontrado a alegria. Abriu suas asas... Já estava ficando cansada. E partiu em busca dos intérpretes dos sonhos.
Sonhos: como são estranhos... Aparecem à noite, quando dormimos. Vêm de muito fundo, lá onde moram nossos desejos adormecidos. Eles são entidades tímidas. Só aparecem com o brilho do luar...
-- Ah! Menina, você nos pergunta sobre o segredo da alegria. Sabemos que é nos sonhos que ela se realiza, como quando se espera a volta da pessoa amada. Antes é a saudade, o vazio. Depois o abraço. Alegria é isso: poder abraçar o que se ama. Mas é preciso primeiro saber, primeiro, o nome do que se ama. E é este nome que aparece, disfarçado, nos sonhos. Conte-nos os sonhos do seu Pássaro!
Mas o Pássaro havia parado de sonhar.
-- Então não podemos ajudá-la. Mas sabemos que os que sonham são os apaixonados. Eles têm asas feitas de saudade. Quem sabe eles lhe dirão o segredo!...
E a Menina partiu, triste. Já estava cansada, longe, muito longe de seu amado Pássaro... E pensou se não seria melhor estar com ele, em sua tristeza. E dentro dela a saudade foi crescendo, doendo, um desejo enorme de voltar...
Muito longe dali, o Pássaro se olhava no espelho e chorava os sinais do tempo gravados no seu rosto e a única coisa que via era sua própria imagem. De repente, entretanto, algo passou bem no fundo da sua alma, Como se fosse um Vento leve, bem leve; ou um raio de sol crepuscular; uma pequena chama de fogueira no frio das montanhas; um sonho bonito, em meio à noite... E ele se lembrou da Menina. Onde estaria ela? Deixou sobre a mesa o espelho e saiu “em busca das marcas da sua Ausência”, no perfume das flores, no gosto dos frutos, no quarto vazio... Havia, por todos os lugares, a presença da sua Ausência. E naquele corpo, por tanto tempo morto dentro do espelho, o Desejo cresceu, o rosto sorriu, as asas se abriram e o que era pesado voou...
Ressuscitou...
E cada um deles partiu, ignorando o que o outro fazia, em busca do reencontro...
O feitiço fora quebrado.
Estavam apaixonados.
Voavam leves, ao Vento, com as asas da saudade...
E ambos traziam, no brilho dos olhos, os sinais da juventude eterna que os anos não conseguem apagar... Porque os que estão apaixonados, não envelhecem jamais...

Diferente


Tenho aprendido outra matemática.
Uma que não é nem um pouco exata
muito menos perfeita.


Meu triângulo tem seis lados.
Esses outros três estão sempre comigo.
Já tive somente três, mas é preciso ampliar
É preciso transformar.

O igual é o diferente.
O maior é o menor.
O que soma é o que multiplica.
E o que subtrai sempre divide.
Contar não é numerar, é conhecer cada um.
A integral não é a anti-derivada, mas o que agrega.
O limite tende sempre ao infinito.

1 mais 1 pra mim é um.
Mas ainda não encontrei o outro 1.
Talvez esteja perdido entre tantos outros meios.
por: Alberto Vieira

Oh ! aquele menininho que dizia
"Fessora, eu posso ir lá fora?"
mas apenas ficava um momento
bebendo o vento azul ...
Agora não preciso
pedir licença a ninguém.
Mesmo porque não existe paisagem
lá fora:
somente cimento.
O vento não mais me fareja a face
como um cão amigo ...
Mais o azul irreversível persiste em meus olhos.

As Borboletas

Brancas
Azuis
Amarelas
E pretas
Brincam
Na luz
As belas
Borboletas

Borboletas brancas
São alegres e francas.

Borboletas azuis
Gostam muito de luz.
As amarelinhas
São tão bonitinhas!

E as pretas, então . . .
Oh, que escuridão!

Autor: Vinícius De Moraes

O Pingüim


Bom-dia, Pingüim
Onde vai assim
Com ar apressado?
Eu não sou malvado
Não fique assustado
Com medo de mim.
Eu só gostaria
De dar um tapinha
No seu chapéu de jaca
Ou bem de levinho
Puxar o rabinho
Da sua casaca.
Autor: Vinícius De Moraes